4ª aula

27/03/2012 15:20

A Tradição e o Dogma

Tradição: palavra ambígua

O valor da Tradição: A importância da Tradição é que ela possibilita a identidade de uma pessoa ou grupo ao longo da história como base de seu sentimento de dignidade. Ela “enraíza” as pessoas num chão ontológico. Dá-lhe uma referencia vital: uma pátria, um lar, um ninho. Arrancar alguém de sua tradição significa desenraizá-lo, e por isso destruí-lo cultural e mesmo fisicamente.

Para a hermenêutica, a Tradição oferece o clima próprio para se interpretar um texto. Este nunca pode ser isolado do seu “ambiente vital”. A Tradição constitui o elemento em que um texto libera seu sentido.

Relevância da Tradição na atualidade:

A pessoa humana é como uma árvore. Precisa de duas coisas: direção – para cima, para o céu aberto; e enraizamento – para baixo, para a terra escura. Ninguém vive sem esperança, mas também não vive sem memória. Sem a Tradição, estamos sem raízes, e sem raízes avançamos para o nada, o vazio existencial. É impossível viver num devir absoluto, na mudança total.

A Igreja herda não só a tradição da fé, mas também a tradição humanista clássica, especialmente a grega. Esta tradição dá as bases naturais da fé. Frente ao mundo atual, que vive da e para a mudança contínua, a Igreja sublinha a necessidade de bases permanentes que sustentem a existência e a orientem.

Por isso, na linha da tradição clássica, ela defende a natureza das coisas, a razão, a ética, a comunidade, a pessoa, a ordem justa do mundo.

Funções da tradição da fé:

Função constitutiva

Função continuativa

Função inovativa

Tradição como processo vivo e dinâmico:

Em virtude das três funções acima, especialmente a inovativa, a tradição cristã se apresenta como um processo dinâmico: é um receber e um dar de modo acrescido; é um passar adiante um legado, depois de enriquecido. Trata-se, pois de um processo vivo, orgânico e crescente, e não de algo morto, mecânico e decadente. A respeito da tradição vale a máxima popular: “quem conta um conto, acrescenta um ponto”, mas apenas neste sentido: a tradição não inventa, acrescenta; não mente, revela. A tradição é a consciência viva da fé. A verdadeira tradição é uma “tradição viva”.

Tradição apostólica e outras tradições:

Em termos absolutos, a grande Tradição (ou Parádosis) se identifica com a própria autocomunicação de Deus em Jesus Cristo e no Espírito. Ela tem um caráter transcendental. Do ponto de vista dos conteúdos, podemos distinguir dois tipos concretos:

1- A Tradição apostólica: É a tradição constitutiva. É a forma histórico-cultural concreta em que se encarnou a única Tradição (Parádosis). Ela se diversifica nas várias testemunhas da Igreja apostólica. Essa tradição é constituinte: gerou o Novo Testamento. Não só: acompanha e prolonga as Escrituras.

2- A tradição eclesial: Esta pertence propriamente à Igreja pós-apostólica.

Distinção: processo e conteúdo

Como processo, a tradição eclesial atualiza a “tradição apostólica” através da pregação, da liturgia e da pastoral em geral. Ela realiza a função continuativa e inovativa da tradição em geral. Seu conteúdo essencial é o da tradição apostólica enquanto renovada e aplicada. Do ponto de vista dos conteúdos da “tradição eclesial”, pode-se dizer que esta gera apenas “tradições eclesiásticas”. São tradições determinadas, normalmente originadas da grande Tradição

apostólica, como “história dos efeitos” dessa grande Tradição.

Eis alguns exemplos de “tradições eclesiais” específicas:

O batismo das crianças

Os ritos dos sacramentos

A data da festa da Páscoa

O sinal da cruz

O culto das imagens

A confirmação como sacramento à parte

A água misturada ao vinho na missa

Essas tradições secundárias são mutáveis, muitas delas se transformam ou desaparecem em regiões ou mesmo em toda a Igreja. Na verdade, são “tradições humanas” que, se de um lado explicitam e desdobram a grande Tradição, podem também enfraquecê-la e mesmo obscurecê-la. Daí que necessitam sempre de purificação e renovação. Para fazer um discernimento e uma eventual renovação das diferentes tradições humanas ou

“eclesiásticas”, eis alguns critérios importantes:

Cristocentrismo: se as tradições em questão fazem jus ao lugar único de Cristo e sua Palavra

Apostolicidade: se têm um caráter originário

Catolicidade: se estão em harmonia com a fé da grande Igreja

Caráter litúrgico: se refletem a lex orandi

Pastoralidade: se servem à edificação do Povo de Deus

A natureza do Dogma e sua interpretação

O sentido básico de dogma no grego do NT é duplo, aliás, como no mundo pagão. Significa:

Opinião doutrinal (Ef. 2, 15; Gl. 2,14)

Decisão, edito, lei (Lc. 2,1; At. 16,4 ; 17, 2)

Dogma, no sentido estrito é uma verdade revelada, normativa e formalmente declarada pela autoridade eclesial. É, brevemente, uma doutrina religiosa eclesial vinculante. Nesse sentido, dogma constitui uma noção típica da Idade Moderna (séc. XV) para a constituição conceitual da qual Melchior Cano (+1560) muito contribuiu. Aqui dogma contrapõe-se a heresia. Não que anteriormente não existisse a noção de uma doutrina contrária à fé. Havia uma noção vivida, mas não havia certamente ainda o nome ou o conceito claro dessa idéia. Só a partir do séc. XVIII, o Magistério usa regularmente “dogma” no sentido moderno acima. E desde o século passado, “dogma” é usado geralmente no sentido amplo para qualquer verdade de fé.

Função dos dogmas:

Os dogmas não são barreiras à frente do caminho, mas corrimãos ao lado dele: existem para proteger o caminhante e apoiá-lo em sua ascensão: São por uma parte, limem: pontos de chegada; mas também são lumem: pontos de partida. São fontes vivas de vida e reflexão. São dinâmicos e

evolutivos. Os dogmas são algo de permanente, mas também de continuamente atualizável. Foram as circunstâncias, especialmente as pressões das heresias, que obrigaram a Igreja a pôr em fórmulas, com objetivo exclusivo de excluir um erro e assim proteger a verdade e transmiti-la na integridade.

Distinção hermenêutica importante: a coisa e a sua expressão

Para interpretar os dogmas, é fundamental distinguir no dogma entre seu conteúdo (absoluto) e sua forma (relativa). Não se pode de modo algum confundir esses dois níveis. Por isso, há de se distinguir cuidadosamente, especialmente (hoje) entre:

A realidade visada, a intenção, o sentido, significado, o conteúdo ou a verdade de um dogma. Isso é o que mais importa. E é esse o objetivo da formulação dogmática: é o valor-fim.

A formulação ou expressão, através de enunciados ou asserções. Isso tem um caráter meramente de mediação: é um valor-meio.

“Uma coisa é o próprio depósito da Fé, ou as Verdades, e outra é o modo de enunciá-las” (GS62,3).

Tal distinção aparece também em outro documento do Concílio (UR), relativo ao Ecumenismo.

Aí se diz que o “modo de enunciar a doutrina” “deve ser cuidadosamente distinguido do depósito da fé”.

Este é permanente, enquanto aquele pode e deve ser reformado.

O que permanece e o que muda no dogma:

Os dogmas, como tais, são irreformáveis, como o declarou o Vaticano I. Seu valor é permanente, e isso não só em sua substância ou conteúdo, mas também em sua formulação mesma. Pois essa exprime o significado que o Espírito sugeriu sem erro à Igreja num determinado tempo. Contudo, toda formulação, mesmo dogmática, é histórica, e, por isso, limitada, relativa e, portanto, perfectível. Por isso também permanece aberta à evolução histórica e mais ainda à completude escatológica. Pode ser aperfeiçoada, melhorada através de novas formulações dogmáticas e novas traduções teológicas.

Na evolução de um dogma podemos distinguir três elementos:

O conteúdo ou sentido intencionado, que é o núcleo perene e o elemento que realmente conta

A formulação dogmática que media linguisticamente esse conteúdo, que é também permanente, mas que não exaure aquele conteúdo

A abertura do dogma a novas formulações, que intentem retraduzir ou explicitar o mesmo conteúdo mistérico à Teologia

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