6ª aula

27/03/2012 14:29

 O NOVO TESTAMENTO – Gêneros literários e formas fixas

Comparação ou parábola

Há quem faça diferenciação entre a comparção e a parábola, que seria: a comparação narra um fato corriqueiro, que acontece no dia-a-dia; enquanto a parábola narra uma situação atípica, inusitada. Assim, a narrativa do semeador (Mc 4,3-9) seria uma comparação, pois semear era uma atividade comum naquele tempo. Já a histária do grande banquete (Lc 14,16-24) narra um fato incomum, pois não é todo dia que alguém dá um banquete e chama os pobres e mendigos para sua casa;  é  portanto, uma parábola. Mas a diferença  é muito sutil e, de um modo geral, todas são consideradas parábolas.

Uma dificuldade que o ouvinte/leitor pode ter é identificar se é uma parábola ou um relato de um fato real. Os narradores da época usavam essa semelhança de propósito, camuflando uma parábola com um fato histórico. O exemplo mais célebre  é o da parábola da ovelhinha do pobre, narrada pelo profeta Natan ao rei Davi (2Sm 12,1-4). O efeito não poderia ter sido melhor. Davi fica revoltado com a atitude do homem rico e decide puni-lo. Ao que o profeta adverte: “Tu és esse homem!”. Só então, Davi toma consciência e confessa seu pecado, sendo por Deus perdoado.É possível que os autores das parábolas jogassem com os dois gêneros literários – o da comparação e o do relato – intencionalmente para prender a ateção do ouvinte, pois este deveria sentir-se envolvido pela história para compreender melhor o ensinamento. Jesus, conhecendo bem esses gêneros literários, deve ter também, por vezes deixado seus ouvintes, desde o início, sem perceberem se ele lhes estava propondo uma comparação ou um fato real.

Mas toda parábola traz uma mensagem, que tem relação com a realidade histórica. A parábola do semeador nos diz que o Reino de Deus cresce, apesar de todas as resistências, e que virá até nós como riquíssima colheita. A parábola do grande banquete mostra que Deus está em ação, chamando Israel para o grande banquete dos últimos tempos; se, porém, seu convite for recusado, ele passar  e  a convidar outros.

Diário de viagem

Vimos em aula anterior que era muito comum o gênero literário da crônica no Antigo Testamento. No entanto, no Novo Testamento não se encontra nada parecido, principalmente nos Evangelhos. A explicção é que as comunidades do NT não tinham nenhum interesse em organizar uma crônica da vida de Jesus. A crônica tinha o seu Sitz im Leben nas escolas de escribas e nos arquivos da corte real e dos santuários centrais. Ela pressupõe, portanto, uma instituição que já tenha uma longa história atrás de si e ainda uma boa caminhada para frente.

As comunidades cristãs primitivas não possuíam arquivos oficiais, não tinham santuários nemtampouco um passado para relatar. Além disso, não esperavam um futuro aqui na terra, viviam na expectativa do próximo retorno de Jesus.

Há um único texto que se assemelha a uma crônica, mas não relata fatos da vida de Jesus e, sim, de Paulo. Está nos Atos dos Apóstolos e começa com a partida de Paulo e seus companheiros em Mileto. (Cf. At 21, 1-10). Nota-se que o texto não é uma narração, mas uma enumerção de datas e de fatos, de maneira sucinta. Segue o esquema de um diário – um diário de viagem no qual se registram de tempos em tempos certos fatos sucintos, para fixar

os principais acontecimentos de uma viagem um tanto longa. Posteriormente essas anotações foram reescritas de maneira mais organizada.

Narrativa histórica

Vamos tomar como exemplo a descrição da prisão de Jesus no evangelho de Marcos (Mc 14,43-52). Alguns elementos dessa forma se enquadrariam bem em um relato ou enumeração de simples fatos. O que caracteriza um fato histórico é a falta de unidade e descontinuidade; acontecem fatos inesperados, às vezes ilígicos, uns cômicos, outros trágicos. E dois detalhes no texto refletem o que é característico de todo fato histórico: alguém que não se sabe quem  puxou da espada e feriu um dos inimigos de Jesus; e um jovem foge nu. Sobretudo esse último episódio demonstra a falta de unidade do texto: o que tem isso a ver com a história da salvação?

Outra característica da narrativa histórica é que, ao contrário do relato, ela interpreta os fatos. Na perícope da prisão de Jesus, o simples fato de dizer “traidor” já estabelece um julgamento, uma opinião. Também quando se relatam as palavras de Jesus “para que se cumprissem as Escrituras”, está sendo feita uma interpretação teológica. A palavra de Jesus mostra que não aconteceu nada de absurdo e incompreensível na paixão, mas que nessa ocasião se cumpriram as Escrituras, isto é, realizou-se a história da salvação.Por tudo isso, o texto de Mc 14,43-52 . muito mais que um simples relato: . uma narrativa histórica que interpreta o sentido dos fatos naquela ocasião, dispondo-os numa sequência lógica e interpretando-os até mesmo colocando uma palavra nos lábios de Jesus. Essa mistura de fatos e interpretação caracteriza toda a história da paixão e a maioria dos textos narrativos dos evangelhos. O sentido profundo da história só pode se tornar claro mediante uma explicação e interpretação. Por isso, o gênero literário da crônica e do relato não podia satisfazer a Igreja primitiva. O que lhe interessava era o sentido histórico-salvífico do acontecimento do Gólgota e a interpretação da vida de Jesus a partir dos dados da fé.

Fórmulas fixas: anunciação e vocação

Como vimos, a narrativa histórica apresenta a narração e interpretação dos fatos, por vezes privilegiando apenas a narração, por vezes privilegiando a interpretação. No Novo Testamento é muito frequênte a forma de textos que se preocupam exclusivamente com o sentido interior da atividade de Jesus e do mistério de sua pessoa. Vamos ver como exemplo a narrativa do anúncio do nascimento de Jesus, descrita em Lc 1,26-38.

Se compararmos com a história da prisão de Jesus, em Mc 14, veremos que na anunciação não existe a descontinuidade e a falta de unidade dos acontecimentos bem como não existe o acidental, o fato irrelevante, como acontece nos fatos históricos que traduzem a vida. Na narrativa de Lucas a história é bem amarrada, cada detalhe no seu lugar, com uma função específica. Quando inicia com a expressão “no sexto mês”, na realidade não quer dizer exatamente uma data; ela tem a função de unir a anunciação do nascimento de Jesus com a do nascimento de João, pois a gravidez de Isabel deve servir de credibilidade para Maria.

Percebemos que o nosso texto foi composto artificialmente quando consideramos que o diálogo entre o anjo Gabriel e Maria provém do Antigo Testamento, onde já existia como fórmulas fixas, nas ocasiões em que seres celestes aparecem aos homens. “O Senhor está contigo” se encontra em Jz 6,12; “Não tenhas medo!” aparece em Gn 15,1; Js 8,1; Jz 6,23; Dn 10,12 e Tb 12,17. “Para Deus nada é impossível” se encontra em Gn 18,14.

Tanto a anunciação do nascimento de João como a anunciação do nascimento de Jesus seguem um mesmo esquema:

1. Aparecimento de um ser celeste

2. Anunciação do nascimento de um filho

3. Fixação de seu nome

4. Revelação de seu futuro

A essa fórmula dá-se o nome de “esquema da anunciação” do qual encontramos pelo menos dois exemplos no Antigo Testamento: Em Gn 16,1-12 (o nascimento do filho de Agar) e em Gn 17,15-19 (o nascimento do filho de Abraão com Sara).

Na segunda parte da narrativa, nota-se a presença de outro esquema, que tem correspondentes também no AT e que chamamos de “esquema de vocação”:

1. Deus expressa seu chamado

2. A pessoa chamada levanta uma dúvida

3. Deus desfaz esta dávida, mediante uma explicação

4. Deus apresenta um sinal comprobativo, como reforço da explicação

Também aqui podemos ver dois exemplos da AT. Em Ex 3,10-12 se descreve o envio de Moisés junto ao fara.; e em Jr 1,4-10, o profeta descreve como foi chamado por Deus.

Concluímos que na anunciação de Jesus, o narrador não está preocupado com a transmissão de simples fatos; sua preocupação maior é a explicação e interpretação dos mesmos.

Podemos deduzir daí que esta é uma narrativa cristológica. Em seu centro estão afirmações de fé pós-pascal: Jesus é o Filho de Deus; Jesus é o Messias investido em um reinado eterno. Jesus é a realização das promessas do Antigo Testamento.

O gênero literário das cartas

Outro gênero literário que aparece com exclusividade no Novo Testamento é o gênero das cartas ou epístolas. Elas nasceram da necessidade que só Paulo sentiu de orientar, aconselhar, exortar as igrejas por ele fundadas ou que, de alguma forma, dependiam da sua pregação.

As cartas possuíam sempre a mesma estrutura:

a) Endereço, nome do remetente e destinatário, seguido de uma saudação, que para os cristãos era sempre “graça e paz”.

b) Mensagem ou tema da carta.

c) Saudação e assinatura.

As cartas de Paulo, sozinhas, constituem mais da metade dos escritos do novo testamento. Ao lado delas, existem ainda as sete “cartas católicas” (=universais), assim chamadas porque não são destinadas a uma igreja em particular, mas a muitas ao mesmo tempo ou aos cristãos em geral: uma de Tiago, duas de Pedro, três de João e uma de Judas.

A carta aos hebreus, por sua vez, apesar de ter sido incluída pelo Concílio de Trento entre as catorze cartas de Paulo, e assim ser considerada pela Igreja Oriental, tem-se hoje por certo que seu autor é outro. Contudo, por se notarem claras influências do pensamento de Paulo, acredita-se que ela foi escrita por um de seus colaboradores

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